Alguns episódios vêm rondando a minha cabeça, vou ver se boto pra fora um a um.
No episódio de hoje, vamos falar sobre abuso financeiro. Começa com uma mentalidade romântica de compartilhar tudo, de doar o que se tem, quando se tem. E faz sentido. Eu gosto dessa mentalidade: um dia eu pago, outro dia você. O problema é quando seu abusador acredita ter tudo sob controle, quando na verdade não tem. E quando a gente tem 17 anos, a gente não tem controle de nada, especialmente das finanças, né? No meu caso, eu viva de uma mesada, que passei a compartilhar para que pudéssemos ter alguma liberdade. A gente não tinha muito onde ficar, então sair para comer fazia sentido e a gente adorava. Era um momento de sonhar com o futuro, compartilhar anseios, histórias, cigarros escondidos das famílias e muitas histórias. O dinheiro tinha poder. Ele tinha razão nisso.
Ao longo da relação, como contei no post Ufa!, fui cedendo tudo de mim pra ele. Todo meu tempo, meu afeto, meus eventos sociais, minha casa, meu dinheiro... aos poucos ele dominou todos os meus aspectos. Fui deixando de ser eu, de fazer as coisas que fazia, de socializar com os meus amigos. A gente se sente uma idiota contando essas coisas... mas a verdade é que quando a gente vive esses abusos nosso pensamento e visão de mundo se transformam, se adaptam, se moldam ao que o seu abusador precisa de você. A luta vai ficando injusta sem que a gente perceba. Enfim...
Eu acreditava que teria uma carreira e segurança financeira lá pelos 20 e pouco... planejava estudar, mas não sabia bem o que. Queria ser arquitetra desde muito pequena, mas aos 15 tive um momento de clareza que me disse que eu tinha ser psicóloga. Já na época de prestar vestibular mesmo eu já pensava mais em fazer Design. A real é que eu tava bem confusa.
Meu ex insistiu bastante e convenceu a minha mãe também que eu deveria fazer arquitetura mesmo, afinal era uma área que abria muitos leques no futuro. Sempre tinha a opção de eu parar também, já que o curso durava 5 longos anos. Bom, prestei arquitetura na USP e Design no Mackenzie. Não passei na USP e fiquei na lista de espera do Mack. Acabei não conseguindo a vaga, mas foi por pouco. No ano seguinte faria cursinho pra conseguir passar na USP, já que minha mãe (que me criou sozinha) não tinha condições de me pagar uma faculdade privada. Eu tinha prestado o Mackenzie só pra ver se passava. Comecei o cursinho junto com meu ex. Ele tinha prestado medicina e não passou por 1 ponto, acredite se quiser.
Eu sempre tive uma certa dificuldade de concentração em sala de aula. Ou eu prestava atenção, ou eu não prestava nenhuma. Esse meu traço acho que foi muito definidor do que veio a seguir. Ele queria a minha atenção, mesmo sabendo que eu não conseguia seguir a aula, queria expressar suas insatisfações e incômodos. Ele era um cara estranho. Teve um dia que ele tirou do bolso um dente de alho e comeu no meio da aula. Disse que tava ficando gripado e que, além do mais, gostava do gosto. Consideração pela namorada zero. Enfim... a classe foi tomada pelo cheiro de alho. Alguém lá no fundo e do outro lado falou: "nossa, que cheiro de alho". Eu queria morrer, me enfiar num buraco. Ele só lançou um olhar de ódio pro fulano. Lembro daquela expressão, olhos e boca apertados seguidos de uma bufada. O conjunto da obra era esse olhar fatal num cara de 2m de altura, cabelos compridíssimos e absurdamente desgrenhados e um colete de couro preto surrado. Acho que levei minha fase badboy ao extremo.
Com esses e outros acontecimentos, ele decidiu que não queria mais estudar lá. Eu só queria estudar, sabia que não tinha chance alguma de passar no vestibular se não estudasse muito! Cheguei a sugerir que já que ele me atrapalhava durante as aulas e estava incomodado com as pessoas la, que ele poderia ir pra outra unidade (tinha que pegar ônibus, levantar mais cedo, eu não tava afim) e eu continuava lá e tentava recuperar o tempo já perdido. Absuuuuurdo. Ele ficou magoadíssimo. Como eu não ia com ele? Não estávamos no mesmo barco? Cedi. Fomos pra outra unidade... nessa época que começou a minha gastrite, aliás.... mas isso fica pra outro episódio. Na outra unidade ficou claro que ele não ia me deixar estudar. Eu entrava nas aulas, ele ficava lá fora me mandando mensagem com chantagens emocionais: e=mc2 ou amor?
Nessas já tinha perdido muito tempo de aulas. Achava um pecado aquilo... via meu plano de estudar na USP indo pro saco. Verbalizei. Ele disse que eu não tinha chance mesmo, que não estudava direito. Que ele, por exemplo, era autodidata e estudava todas as madrugadas. Não passou na USP por 1 mísero ponto e esse ano com certeza passaria. Eu só queria estudar de dia e dormir a noite mesmo, mas isso parece que não fazia muito sentido pra ele.
Eu precisava de um plano. Conversavamos com a minha mãe... ele sugeria muitas coisas e ela geralmente acatava. Ele era bem persuasivo. Minha mãe adorava ele. Ele não gostava tanto assim dela, mas eu nunca contei pra ela isso... até hoje ela sente saudade dele e não entendeu a dimensão do abuso que eu sofri. Outro episódio também... Voltando ao plano, estávamos os três debatendo opções. Minha mãe achava que eu tinha que ir morar fora, então não precisava de faculdade. Eu achava que a USP era minha melhor e única opção, especialmente por ser gratuita. Eu ainda cogitava trocar de curso, tava confusa pra caralho, lembra? Já ele achava que a melhor opção era a minha mãe me pagar o Mackenzie e que eu poderia fazer arquitetura lá. Eu poderia tentar a USP no fim do ano ou uma transferência depois. Minha mãe resistiu, eu resisti, mas no fim todo mundo concordou que era a melhor opção. E foi assim que minha carreira foi decidida..... no wonder eu tive várias crises como arquiteta, ahn!?
Pra você ver que a vida dele também não era das mais fáceis, a mãe dele simplesmente o matriculou num curso de Biomedicina, o qual ele se deixou convencer a fazer. Era longe... e adivinha quem levava ele todo dia de manhã antes de ir pra faculdade que era a 10min da minha casa? Aham.... acertou, euzinha.
Voltando ao relato, eu prestei e passei na Arquitetura do Mackenzie e, no meio do ano, comecei meus estudos lá. De cara preciso dizer que minha vida enquanto estudante universitária foi absolutamente pobre. Por causa da já mencionada "dedicação total a ele", eu não participei dos eventos sociais, viagens, nada. Acho que essa é uma das coisas que mais me dá raiva quando penso nele... de tudo o que eu não vivi. Mas falando do que eu vivi dentro do Mackenzie, fiz alguns amigos, aprendi muitas coisas legais, outras chatas, cabulei umas aulas pra ir comer pastel de sexta-feira com amigas. Sem grandes emoções. Só uma talvez: lembra da tal ideia da transferência pra USP? Pois é, além de estudar arquitetura de manhã, ele convenceu minha mãe a me pagar um "intensivão" no cursinho durante a tarde pra eu prestar vestibular no fim do ano. Fiz. Me dediquei de verdade... dessa vez eu valorizei MUITO o fato de que ele estava longe envolvido nas suas próprias atividades. Foi insano e eu não passei, mas foi emocionante... (riso nervoso)
Assumida minha estadia na faculdade particular, chegou a hora de pensar em estágio. Eu faria a tarde, já que estudava de manhã. Ele foi contra... pra que trabalhar 4hs pra ganhar 300 reais? Não vale a pena... fez as contas pra me provar que eu gastaria mais do que ganharia. Eu concordava e sabia dessa matemática, não era burra, mas sabia que precisava ganhar experiência e vivência de mercado. Os argumentos dele deixaram de falar de números e começaram a falar de novo da minha total disponibilidade a ele em caso de alguma emergência familiar; eu era a única que dirigia e tinha uma carro à disposição. Já era muito tempo que eu passava dentro da faculdade. E ele achava que eu tinha mais que me dedicar aos estudos e projetos arquitetônicos. Vamos pontuar a opinião da minha mãe nessa história? Ela foi convencida logo nos números mesmo; a coitada já tava num prejuízo danado com essa história toda de cursinho, faculdade, intensivão, pagamento de mais e mais vestibulares... compreensível. Como essa é uma história de abuso, você já deduz que abri mão de fazer estágio... eu nem sabia o que dizer pros meus colegas, nem sabia como lidar com a minha frustração... nessa época eu dizia pra minha médica que eu sentia que tinha engolido um sapato velho de couro, imundo e surrado; por mais que eu fizesse um jejum de um dia inteiro, o sapato tava sempre lá: indigerível.
A faculdade foi acontecendo, a dele também, a gente chegou a estudar e prestar alguns concursos. Eu odiava cada minuto, eram decorebas sem fim sobre assuntos exageradamente abstratos pra mim. Em algum momento ele prestou pra trabalhar em banco, e passou. Depois de um tempo que ele começou a trabalhar lá, parou de ir pra faculdade. Nessa altura ele já vinha estudando e desenvolvendo projetos relevantes sobre segurança. Gênio que era, desenvolveu uma maneira de identificar se o usuário tentava se passar por outra pessoa. Fui eu a cobaia, ajudei a colher os dados que ele precisava pra desenvolver o programa. E deu certo, era muito impressionante! Depois de trabalhar algum tempo no banco e criar uma patente (minha mãe que pagou pela patente, aliás...), ele fez bons contatos no banco e apresentou a sua ideia. Ficaram tão impressionados que pediram pra ele ir pra outra cidade implantar esse sistema: isso viria com uma promoção! Uhu!!! Mas.... morar em outra cidade era impensável dadas as questões familiares dele. Por outro lado, a ideia da promoção e da oportunidade de alavancar com essa e outras patentes que ele vinha desenvolvendo podiam ser a chance de enriquecer e acabar com todos os problemas que existiam no mundo. Valia a pena. E foi assim que começamos a falar em morar juntos, em irmos pra outra cidade.... eu teria que trancar a faculdade, o que não me parecia um grande problema mais... aliás, nessa altura da história - eu já estava no 4o ano da faculdade - eu vivia anestesiada. O estômago doía, mas só ele. Nada mais doía em mim. Já não sabia diferenciar tristeza de depressão, pois meu estado era constante.
Já estávamos juntos há muito tempo, vivíamos em crise e parecia o momento do "vai ou racha". Casamos por isso, porque íamos mudar de cidade. Não existiu outro motivo... não era hora. Tínhamos 22 anos, um bancário e uma estudante que não sabiam nada da vida. Topei trancar a faculdade e ir morar junto, mas achava que o casamento poderia acontecer na volta, não tinha pressa. Aliás, eu entendia que esse período morando juntos sem a influência da proximidade da família pudesse ser libertador e esclarecedor e, portanto, poderíamos usar disso como um teste. Melhor coisa, não? É, não. Ele ficou ofendido que eu punha em questão o nosso amor e a certeza de que tínhamos um plano juntos. Houve pressão por parte da família dele, e dele. A mudança seria dali cerca de 3 meses, então corremos pra providenciar um casamento. Verdade seja dita, eu não fiz muita coisa, a mãe e irmã dele se encarregaram de tudo, eu só compareci. Os gastos ficaram por parte da família dele, amém. Não gastamos muito, meu vestido foi o vestido mais simples que uma noiva já usou. Foi tudo muito simples e eu não me animei de convidar muita gente, não me sentia feliz e realizada como uma noiva deve se sentir.
Resumo da história, os supostos 3 meses viraram 4, 5, 6... e no fim a proposta foi abandonada; ele desistiu de esperar porque já tinha outros planos. Passamos os primeiros meses vivendo em flats, mas depois do terceiro acabamos alugando um apartamento que eu definitivamente não escolhi morar. Foi lá que ficamos até o fim (que não estava longe, amém.)
Como um bancário empreendedor e uma estudante se bancavam? Então... ganhamos mais de 30mil reais da minha família como presente de casamento para começarmos uma vida nova em outra cidade. Comecei a trabalhar remotamente com o meu irmão, que era arquiteto e, naquela época, quase um estranho. Somos filhos de pais diferentes e não tínhamos quase contato até essa época. Eu nem sabia que ele já era arquiteto quando ingressei na faculdade. Mas por ser meu irmão, meu ex aceitou que eu trabalhasse... e por mais que ele tivesse opiniões sobre não querer que eu trabalhasse (pois queria me prover a melhor vida possível), ele concordava que o dinheiro era necessário. Eu estava mais preocupada em começar a ganhar qualquer experiência que fosse do que de ganhar dinheiro, porque eu via que ele era um saco sem fundo. Digo isso porque nos primeiros meses do nosso casamento, ele achou que a gente era rico, sei lá. Planejamento zero.... tava convicto em pouquíssimo tempo (3 meses... tudo sempre mudaria em 3 meses...) ele estaria milionário, então o dinheirinho que a gente tinha era dinheiro de pinga. E foi assim que ele achou que era uma boa ideia dar uma câmera de 2,5mil reais de presente de natal pra mãe dele...................................
Eu ficava em choque com esses gastos! Sempre tive muita noção do valor do dinheiro. Aliás, ao longo da minha adolescência eu juntei uns quase 3mil reais, que pensava usar pra dar de entrada em um carro quando fosse mais velha. Esse dinheiro eu dei pra ele pagar uma dívida de família ainda no começo do nosso namoro. Depois de 5 anos, eu já tinha aprendido que ele era um gastão, megalomaníaco e sem noção da realidade. Ficava arrasada de ver nossas economias herdadas sendo jogadas no lixo. Ele sempre tinha uma justificativa boa o suficiente pra eu não querer mais rebater, nessa altura eu já estava exausta de tentar falar com sensatez. Sempre acabava do mesmo jeito e eu já não tinha mais forças... só concordava.
Bom, voltando ao trabalho remoto, eu ajudei meu irmão num projeto residencial. Eu ganharia meu primeiro pagamento, eram 1.200 reais mais ou menos. Lembro de meu ex me perguntar o que eu faria com o dinheiro. Eu planejava me mimar de levinho, ir ao salão e comprar um par de botar. Era só isso que eu planejava, o resto queria guardar. O que aconteceu com esse dinheiro foi bem diferente. Antes mesmo de eu receber, ele chegou em casa um dia e me disse que tinha prometido o meu primeiro salário pra pagar uma dívida do pai dele. Por fora eu não tive reação, ele só faltou dar um tampinha na minha cabeça quando disse que sabia contar comigo e que eu iria concordar, por isso não tinha me consultado; por dentro eu desmoronei em frustração e tristeza. Me senti egoísta. Ele dizia que eu era egoísta o tempo todo e eu não achava justo, mas as vezes me questionava.
Já era o fim do casamento nessa altura, amém. Eu já estava completamente desiludida de qualquer dos planos que a gente tivera. Já não sentia mais vontade nenhuma de estar com ele, e já não sabia mais quem eu era ou como retomar o rumo da minha vida. O que eu sabia é que isso não tava certo e que eu não me permitiria mais passar por isso. Esperei longamente ser recompensada, achei que esse dia chegaria, que nossa vida seria mais tranquila e prazerosa. Mas chegou a um ponto que ficou claro que a vida ao lado dele seria sempre um inferno.
Quando finalmente nos separamos, eu quebrei o cartão que tinha com ele e pedi 50 reais emprestados pra minha mãe. Eu não tinha um puto. Uns meses antes minha mãe perguntou por um cartão dela conjunto comigo que eu tinha guardado. Procurei, procurei, não achei. Ele jurou até fazer ela se lembrar de eu ter devolvido esse cartão pra ela quando nos casamos. Durante a arrumação final das minhas coisas para deixar aquele maldito apartamento, questionei de novo sobre esse cartão e ele ficou bravo. Não toquei mais no assunto, mas um ou dois anos depois esse cartão surgiu com contas astronômicas. Ele nunca explicou. Pouco tempo depois me chegou uma carta do SERASA referente à uma dívida de mais de 94mil reais. Depois de quase desmaiar, liguei putíssima da vida pra ele. Pediu desculpas, disse que tinha feito uma dívida e se enrolado, que estava tentando abrir o negócio dos sonhos da sua mãe e por isso pegou o empréstimo. Mas eu nunca assinei nada! Não somos mais casados. Que porra é essa!? Na época que o empréstimo foi feito ainda éramos cônjuges (estávamos separados) e aparentemente minha assinatura era obrigatória, mas de alguma forma esse documento foi pra frente sem eu nunca saber. Legal, né? Essa dívida aumentou e mais cartas chegaram e cada vez mais eu sentia ódio dele, da existência dele. Um dia ele me ligou pra me contar que essa dívida tinha sido paga, ele estava muito orgulhoso. Não fez mais que a obrigação.
Esse exercício têm sido importante pra mim por muitos motivos. O principal é manter as melhores relações possíveis agora. Tenho um namorado incrível, porém difícil. Muitas vezes as ações dele me levam pra lugares muito antigos. Não é justo com ele. Também não é gostoso pra mim. Escrever me liberta. Agradeço aos que decidiram acompanhar meus relatos. Agredeço pelo tempo e pela dedicação em conversar comigo a respeito, têm ajudado. Sei que não é agradável... é pesado, é chato, é antigo... já deu tudo o que tinha que dar... rs... ou quase.
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