Ufa!

     Já li tantas histórias sobre relações abusivas. Achei que talvez tenha chegado a hora de contar a minha. Um simples post; é o merecido e necessário.

Começamos a sair aos 17. Eu nunca tinha namorado ninguém, e estava mais carente e curiosa que nunca para descobrir a minha sexualidade. Tinha ficado com uns caras, mas ainda era virgem. Era muito insegura com meu corpo e buscava um lugar de aconchego. A gente se conheceu online e nos descobrimos vizinhos de bairro. Ele era bom demais de papo. A gente conversava sobre tudo! Tínhamos várias coisas em comum, em especial um amor gigantesco por música e artes. Compartilhávamos muitas referências, contávamos histórias, também falávamos das nossas dores. Ele dedicava tempo a mim, fazia questão de que estivéssemos juntos. Era extremamente carinhoso.

Sentia que aprendia constantemente algo com ele. Eu aprendi a tocar violão sozinha com uns 15 anos. Ele, que tocava violão clássico, passou a me ensinar. Amei a iniciativa dele... e a música era uma coisa que nos unia fortemente. Ele me ensinou a tocar coisas bem complicadas, a corrigir meu dedilhado, entender um pouco da teoria e ler partitura... o violão era importante pra nós, e era uma coisa que eu amava nele. Ele me estimulava a ler, estudar, fazer coisas mais "úteis" da minha vida.

Hoje vejo sinais ali no início e lembro de na época pensar que ele era uma pessoa complexa, diferente do resto. Ele era um cara brilhante, talentoso (tocava vários instrumentos), escrevia poemas... era um cara sensível, artista nato, inteligentíssimo. Eu achava tudo isso o máximo. Reconhecia que tinha algumas qualidades que eu também atribuia ao meu pai, que eu perdi aos 11 anos. Ele se mostrou paternal pra me aconchegar.

Ele era muito carente, queria falar o dia todo por mensagens e me ligava umas 5 vezes. Fazia questão que a gente se visse todo santo dia. Ainda reclamava que eu não ligava pra ele... eu brincava que não dava tempo de sentir saudade e ele ficava extremamente magoado. Apesar de notar que ele era meio estranho as vezes, eu acho que nosso namoro começou normal. Até gostava da excentricidade dele. Hoje vejo os sinais, mas na época não via mesmo: ele me achava insensível e demonstrava toda a sua dor através de músicas que tocava ou poemas que esrevia... eu achava um pouco cansativo, mas no fundo gostava da atenção. Ninguém nunca tinha me amado tanto assim. Ou pelo menos eu achava que era amor...

Nada do que eu falasse era interessante o suficiente, sempre havia uma crítica. Ele dizia que estar comigo era horrível, mas ainda assim era a melhor parte do dia dele. Ele acgava péssima a minha postura como estudante e não me deixava fazer as viagens e atividades... isso ia contra eu estar sempre à disposição caso ele ou a família precisassem de mim.

Ele debochava que eu só queria uma vidinha normal.... ele fazia da vida um inferno em busca da vida ideal. Acho que nossa maior diferença estava aí. Ele era megalomaníaco e me achava simplória. Eu tava cagando pra ideia de ser milionária. Me sentia depreciada de um tanto, que a sensação física disso me acompanhou por anos...

Namoramos durante 5 anos. Com o tempo as serenatas passaram a ser um tormento. Eram horas e horas sendo expectadora dele. Lembro que as vezes ele me dava umas entrevistas, eu nem precisava perguntar nada. Meus amigos foram sendo afastados pouco a pouco

Meus melhores amigos fizeram uma intervenção na ainda no começo da relação. Chamaram ele de canto e disseram que ele abusava de mim e que isso não estava certo. A verdade é que eu não sei exatamtente do que eles falaram e não lembro exatamente de como tudo aconteceu, foi um dia muito muito muito confuso pra mim, não entendi metade do que aconteceu. Mas lembro que um dia antes, meu amigo quase que se despediu de mim; disse que me amava muito e que sempre pensaria no meu melhor. Minha melhor amiga também me disse a mesma coisa.... não entendi o que queria dizer uma relação abusiva e não enxergava o quão mal ele me tratava. O resultado disso é o que mais me dói de toda essa história: perdi meus amigos. Tentei manter contato com eles mesmo depois do "ou eles ou eu". Ele perguntava se eu não entendia a gravidade da situação, que os dois tinham tentado terminar a nossa imaculada relação, que eram monstros, que o nosso amor era muito maior que isso... depois disso, eu falava com a minha amiga uma ou duas vezes por ano, e era sempre um terror na volta. Passava 2hs com ela e 6hs discutindo com ele... eram noites muito tristes, porque não conseguia sentir a felicidade de estar com ela assim que já não estava mais com ela. 

Ele dominou meus pensamentos. Eu já não sabia mais quem eu era antes de conhecê-lo. Sentia uma insegurança infinita, já que não era digna de amor e só ele foi capaz de escrever uma história comigo.

A família dele era particularmente problemática, tinha desde de alcoolismo à abusos físicos, agressões. Minha relação com eles era muito limitada, meu ex fazia questão de regular a quantidade de interação, não queria que eu ficasse amiga da irmã dele, pois dizia que ela semeava a discórdia e portanto era melhor não. Com a mãe dele, ele me fez todo um discurso de o que eu podia ou não podia dizer, e como devia chamá-la.... me passou as normas de conduta para tratar o pai dele também. Resumindo, a coisa toda era feita de uma forma que a visita à família me parecia uma encenação. Eu acabava sempre muito calada, nada a vontade para fazer alguma brincadeira ou ser espontânea. Minha timidez também não ajudava... Deus o livre eu dar algum fora e ele ficar abalado, falando por horas os efeitos devastadores de como ele sofria com tudo, como ele estava sempre lutando sozinho. Era sofredor profissional.

As brigas eram intermináveis e exaustivas.... eram horas e horas das razões e motivos dele. Ele dizia que eu era muito egoísta, que não conseguia ver o lado dele. Eu já nem argumentava mais... e eu tentava fazê-lo feliz, tentava mesmo... me coloquei totalmente a disposição dele pra ajudar com tudo o que pudesse. Mas nunca era o suficiente. Ele era incapaz de ser feliz, mesmo que por um instante.

Ele passava as madrugadas em claro estudando, tinha certeza que criaria algo que entraria pra história. Mas o objetivo mais importante era recuperar a fortuna perdida da família e, assim, reestabelecer a sanidade, sobriedade e relações entre todos. De fato ele registrou algumas patentes e foi convidado a estudar no MIT alguns anos depois.

Eu era a motorista dele, levava pra faculdade, buscava do trabalho, levava pra casa... e ainda tinha que estar à disposição da família dele também pro caso de alguma emergência. Aos poucos meus esforços de fazer tudo por ele, pra aliviar a dor que ele sentia viraram a minha meta principal. Ele precisava que alguém o colocasse em primeiro lugar, então eu fiz isso. Por que ele não dirigia? Ótima pergunta. Ele não tirou carta até os 22, porque estava sempre muito ocupado. Os motivos eram diversos. 

Eu era muito independente quando nos conhecemos e ele foi tolindo isso aos poucos. Dizia que tinha muito medo que alguma coisa ruim me acontecesse. Também não gostava se eu entrasse sozinha em bar, dizia que não era lugar pra meninas irem sozinhas. Algumas cavalheirices do começo do namoro se mostraram opressivas e passaram a me incomodar. Eu rebatia que era perfeitamente capaz, mas ele sempre fazia aquela chantagem emocional onde ele era a pessoa mais sofredora do universo e eu a pessoa mais egoísta que ele conhecia. Era impossível ganhar uma discussão com ele.

Os abusos verbais eram constantes, ele me manipulava e controlava... eu passei a ver o mundo pela ótica dele. Hoje me sinto péssima por ter me deixado levar desse tanto. Nem sei até que ponto eu culpo ele ou se me culpo mais. Abusos físicos aconteceram em duas ocasiões que ele saiu de si e me agarrou pelo pescoço. Nas duas vezes eu me defendi dando uma joelhada no saco dele... ele se mostrou realmente muito arrependido, principalmente por não ter recordações das agressões. Eu acreditei e relevei... no meu caso, o maior abuso era verbal e psicológico mesmo. Nunca tive medo de chutar saco de homem pra me defender. rs

Uma das coisas que a gente discutiu muito foi sexo. Quando nos conhecemos eu era virgem e curiosíssima pra começar logo minhas aventuras por intimidade.Ele me contava das histórias dele, inclusive das orgias das quais já tinha participado. Ele era bem precoce... tinha vivido muitas coisas. No começo a gente dava uns amassos, tudo normal. Mas ainda nos primeiros meses de namoro, quando foi pra rolar mesmo, não rolou. E daí até o fim foi uma discussão sem fim.... primeiro ele me disse que era pura e doce demais pra ele me "sujar" dessa maneira. Levou os primeiros meses de namoro com essa desculpa do medo de tirar a minha virgindade. Depois de eu não aceitar mais, ele confessou que sentia dor no pênis. Levei ele numa médica que confirmou a necessidade de uma operação simples, como uma fimose. Ele só precisava ligar para um urologista e resolver isso. Parece simples, mas a verdade é que ele nao queria resolver isso, ele era a pessoa mais assexuada que eu já conheci. Tinha aversão a ficar junto no sofá. Não gostava de andar de mãos dadas. Só dava um beijo por dia na nossa despedida, era combinado já. Eu me sentia fisicamente isolada dele. E aí as razões pelas quais ele nunca marcou o médico: 

Porque eu não tenho dinheiro. (Ofereci, recusou, virou briga.) Porque eu quero ir dirigindo pra essa consulta. Então eu tenho que tirar carta antes. (essa serviu por meses). Porque eu tenho que conseguir um emprego e um plano de saúde. (Aí ele conseguiu um emprego, passou num concurso e foi trabalhar no banco. Aí voltou pra desculpa do carro por um tempo..... pela masculinidade dele! Eu podia levar ele pra todo lugar, menos pro médico). Porque eu não tenho tempo de ligar. Porque eu não posso desviar a minha atenção da minha família. Porque minha prioridade é o meu pai, não você. Porque eu não sei se quero transar com você, você é desinteressante, nunca fala nada legal. Porque eu tenho meus complexos.... se a gente pudesse transar de roupa, tudo bem. (Sem problemas, filho.... contanto que a gente transe, pra mim tá ótimo). Porque você tá gorda. Porque você é repulsiva Porque você ainda me enche o saco com isso? Você é uma puta, tá louca pra dar (mais de 4 anos de namoro.... pai amado!).

Depois disso eu desisti. Falei pra ele que não dava mais, que me sentia completamente sozinha dentro da relação. Que aquilo não era um namoro. Ele, como sempre, me prometeu que tudo iria melhorar em poucos meses, agora que a primeira patente dele tinha saído e, junto dela, uma promoção no banco para uma vaga em Brasília. Eu amava ele e os sonhos que a gente tinha juntos de ter uma família. Amoleci.

A ida pra Brasília foi o motivo pelo qual nos casamos. Eu me propus a trancar a faculdade e ir com ele, mas preferia casar na volta. Queria que essa oportunidade longe da família dele nos desse a chance de resolver as questões do sexo, além de melhorar a comunicação, ver se a convivência traria mais afeto e diminuiria as brigas. Ele me persuadiu a casar antes de ir; queria começar logo nossa vida e falou que sofria pressão da família pra casar antes de morar junto com alguém. Cedi, mais uma vez...

Chegado o nosso casamento, eu já não tinha mais contato com os meus melhores amigos. Não quis convidar ninguém pro evento, estava melancólica. Aliás, lembro de chegar dentro de algum carro antigo vestida de branco,virgem, com medo, ansiosa, esperançosa, mas ao mesmo tempo apática e triste. Não sei explicar bem, mas lembro de pensar "Era pra ser o dia mais feliz da minha vida, mas eu definitivamente não me sinto assim."

Nossa lua de mel se mostrou mais uma etapa de incertezas e confusões. Ele me diminuia constantemente, mesmo na frente dos outros. Minha irmã não foi no meu casamento porque não gostava da forma como ele me tratava. Já umas amigas da faculdade achavam que a gente era o casal perfeito. Só achavam ele meio ciumento por não me deixar ficar até muito tarde na rua. Na verdade não era ciúme, mas controle.

Nosso casamento foi um inferno, a gente só brigava. Brasília nunca aconteceu, acabamos num cubículo  na Moóca sem acesso ao transporte público. Ele ficou com o carro pra trabalhar. Acabei virando uma dona de casa aos 22 e odiava cada segundo. Estava totalmente em função dele. Já não estudava, não podia trabalhar, não saia do apartamento e as coisas que fazia por ele não eram boas o suficiente. Ele passava horas depois do trabalho na casa da mãe. Quando chegava em casa do trabalho ou da casa da mãe, jogava CS no computador por algumas horas, reclamava da minha comida e ia dormir. Eu jamais consegui dormir com ele, acabei por meses com uma insônia terrível... só ia dormir quando ele acordava e saia de casa, umas 10h. Dormia por 3 ou 4hs cada dia.... nessa época eu comecei a ficar cada vez mais deprimida e desesperançosa.... comecei a ter raiva dele. Vi que já não tinha atração nenhuma da minha parte.... e que o respeito tinha acabado.

O término foi complicado. Esses meses reclusa do mundo me deram a oportunidade de ter longas conversas com o espelho. Eu vi que aquela não era eu. Não era quem eu queria ser... e que eu já não sabia mais ser eu mesma do lado dele. Naquele momento eu soube que não queria mais estar com ele. Imaginava que ficaria solteira por muitos anos mais até alguém me achar digna de amor de novo... mas quis correr o risco porque sabia que mesmo a solidão era melhor que aquilo. 

Foi um mês interminável, com conversas que duravam de 6 a 15hs.... era muito intenso, como tudo com ele era. 

Nessa altura ele viu que eu não queria mais, me propôs que a gente tentasse mais um mês, que ele tinha finalmente marcado a consulta do médico e reconhecendo como ele me desvalorizou por tanto tempo. Me disse que não iria prometer mudar, porque já estava mudado e tudo seria diferente. Eu mantive firme meu argumento de que se eu não sei ser eu mesma perto de você, eu definitivamente não quero estar perto de você. E quanto ao médico, ótimo, resolva sua saúde, mas quem tem repulsa agora sou eu. 

Finalmente contei pra minha família e pedi ajuda. Precisava de dinheiro pra um carreto e um lugar pra morar. Minha mãe me deu o dinheiro, minha avó me acolheu. E aí foram 3 dias de pavor enquanto empacotava as coisas.Ele começou a ficar agressivo, falava que eu tinha feito a pior decisão da minha vida, fazia ironias, rasgava fotos e jogava em cima das minhas coisas... eu tive medo dele de um jeito que nunca tinha tido.Ainda assim, tratei de organizar as minhas e as coisas dele também, pois precisávamos liberar o apertamento. Até o último momento ele tentou. Me trouxe flores, ajoelhou, pediu perdão, me deu razão por coisas antigas, me prometeu mundos e fundos. Aquilo já não me penetrava... só angustiava.

Coloquei a última caixa de livros num carro já muito carregado com as minhas últimas coisas. Ele me acompanhou até o carro, me deu um beijo e disse que prometia que seguiria tentando, que iria me reconquistar. Foi um peso enorme ouvir aquilo... foi uma despedida muito pesada. Entrei no carro, ainda mais pesado e ao sair da garagem, vi o sol iluminando a rua à minha frente e, de repente, nada mais pesava. Eu estava livre.



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