A carta perdida

 Essa noite eu sonhei com uma carta que nunca foi enviada. Ela falava sobre as coisas que você nunca teve chance de entender. Eu achava que precisava escrever para te explicar, mas na verdade os anos me mostraram que eu que precisava entender, me desculpar e seguir em frente. A última parte acho que já fiz; a vida seguiu, as minhas relações melhoraram, cultivei coisas boas e hoje vivo uma relação plena, carinhosa, com muito amor e parceria. Sou muito agradecida e tenho muita sorte. Sim, estou falando isso em 2020!

O conteúdo da carta, no entanto, tinha a ver com todas as relações que não deram certo e seu porquê. Hoje entendo que foram duas questões: uma foi a forma como aprendi a me relacionar, sendo abusada psicologicamente no meu primeiro relacionamento, diminuída constantemente e me sentindo menos do que eu sempre fui. Meus últimos textos falaram mais longamente sobre essas experiências e como me afetaram até aqui. A segunda é mais interessante: estou no espectro autista, o que me classifica como uma pessoa diferente da maioria. Na prática o que isso quer dizer é que eu processo informações de uma maneira diferente. Me chamam de "neurodiversa", enquanto você é um "neurotípico". O que isso quer dizer? Basicamente quer dizer que somos bem diferentes quando o assunto é se divertir, por exemplo. Diversão pra mim é tratar de filosofar sobre assuntos num grupo bem pequeno. Ou ter uma conversa profunda com um amigo. Ou ficar junto do meu cachorro vendo netflix. Ou viver meus momentos a dois com o meu namorado. Diversão pra mim não é: ficar na balada até 4h da manhã; encontrar aquele grupo enorme de amigos; ouvir música muito alta, churrascão com a galera desconhecida ou fazer atividades em grupo. Um jeito mais fácil de entender isso é pensarmos na diferença entre um introvertido e um extrovertido. Enquanto um se energiza dos encontros sociais, das festas e tal; o outro, eu, se energiza da caminhada sozinha com fones de ouvido, mergulhando num livro ou cozinhando pra 5 pessoas. hehe

O espectro autista é considerado pela medicina como doença, porque somos minoria. Alguns estudos apontam, no entando, que os neurodiversos seremos maioria daqui algum tempo. Isso porque cada vez mais pessoas vem sendo diagnosticadas com alguma "doença" desse campo do TEA.

Enfim, uma das características mais marcantes do transtorno é a inabilidade social, muitas vezes fobia social; rola uma ansiedade fortíssima só de pensar em interagir com um monte de gente que eu não conheço. Outra característica é a hipersensibilidade quanto a cheiros, sons, tato (sabe aquela etiqueta da camiseta que você PRECISA cortar pra conseguir usar? Então...) e até fotofobia.

Quando descobri esse universo, me senti menos sozinha no mundo. Vi quantas pessoas, em especial mulheres, que só descobriram estarem no espectro depois de velhas. Minha mãe, por exemplo, nunca soube explicar porque algumas coisas era tão mais difíceis pra ela... bom, muitas das nossas conversas giraram em torno de entender o que era o espectro e tanto ela como eu nos identificamos e nos aliviamos de entender que é uma condição que atinge uma parcela grande da população. Não é doença... não é retardo... não é menos. Só é diferente.

A lingaguem não verbal pode ser muito difícil e eu gosto quando as coisas são ditas, porque tenho um entendimento mais literal das coisas. Nem sempre sou capaz de entender a hora de parar de falar, porque não entendo algumas sutilezas da linguagem. Geralmente sinto outros muitos estímulos e fico perdida quanto ao que esperado pela conduta social. Claro que sou altamente funcional. Aprendi ao longo da vida a fazer e lidar com as relações da maneira esperada. Isso não significa que seja fácil.

Nem tudo é dificuldade também. Eu tenho uma habilidade de dar inveja, se chama hiperfoco. Isso quer dizer que eu sou capaz de desempenhar tarefas com muita rapidez e inteligencia, pois coloco todo meu foco e energia em uma tarefa por vez. Isso me fez uma funcionária exemplar dentro de empresas, por exemplo. Se capaz de mergulhar num projeto por x tempo sem ser interrompida, significa um retorno de produtividade altíssimo. Por outro lado, interrupções me atrasam muito, pois é difícil voltar pro nível de atenção exclusiva. É como um estado de meditação; se você é interrompido, leva algum tempo para voltar àquele estado. 

Por que eu precisava falar disso tudo? Porque a empatia das pessoas e compreensão das minhas dificuldades me ajudam a estabelecer melhores laços e relações. Porque às vezes eu simplesmente preciso que algumas coisas sejam ditas, pra não ter dúvidas e eu não me sentir tão perdida. Porque aí eu posso me retirar de situações de alto grau de estímulo sem ninguém me julgar. Um exemplo disso são as discussões sobre política. Nunca consegui engajar nessas discussões porque o que geralmente acontece é que mais de uma pessoa fala ao mesmo tempo. Meu cérebro não consegue acompanhar, processar, digerir e gerar algum argumento ou resposta. Eu acabo quieta tentando apenas acompanhar. Mas acabo frustrada por não conseguir e prefiro me retirar da roda. As pessoas com quem moro já sabem e entendem isso, o que me deixa a vontade. Outras vezes, no entando, não tenho como me retirar e acabo entrando em um estado introspectivo que algumas pessoas chamam de "zone out". É um escape, talvez um mecanismo de defesa, que me alivia e acalma. Eu me dou muito bem comigo mesma... e esse estado é gostoso pra mim, mas incomoda aos demais. Deve ser estranho mesmo pra quem vê de fora. 

Todos esses aprendizados sobre a relação abusiva somada ao espectro autisma me fizeram ver quem sou e me perdoar pelas coisas que fiz - ou não fiz - no passado. Abracei meu lado ingênuo e amável, pois são parte de quem eu sou. Agora eu tomo cuidado pra não ser passada pra trás, estou atenta aos possíveis abusos que podem vir de relações pessoais ou profissionais. Deixei de viver conforme aquilo que é esperado de mim e passei a olhar pras coisas que realmente me interessam e me fazem sentir bem.

Foi muita merda... minha vida não foi das mais fáceis. Lembro quando eu era criança e pensava que a vida adulta ia ser boa, simplesmente porque eu merecia algo melhor que aquilo. E é. Minha vida adulta é a realização da minha essência, competências e emoções. Aqui sou capaz de comunicar, relacionar e viver em harmonia. 


 

Precisei de muitos anos sozinha pra entender tudo isso. Me distanciei de qualquer possibilidade de relacionamento amoroso por quase 1 década, foquei nas amizades. Comecei a pensar que o aspecto amoroso de uma relação é um bônus; a amizade sempre terá que ser a base de qualquer boa relação. Talvez para a família existam excessões, mas vale como regra geral pra mim.

Exercitar minhas habilidades sociais com foco nas amizades me ajudou a perceber algumas sutilezas e muito sobre respeitar o limite do outro; entender o quanto cada um tem pra oferecer. Aprendi com nosso término que cada um oferece o que pode e que eu precisava administrar e suprir minhas próprias expectativas. Tinha muita coisa interna que precisava ser resolvida naquela época.

Agora a cereja do bolo é me momento atual. Há mais de um ano ganhei um companheiro que realmente se envolveu no meu modo de ver o mundo e quis me entender. Ele me impulsiona todos os dias a ser a minha melhor versão. Com ele, me sinto forte para seguir investigando e ressignificando minhas histórias para podermos viver melhor. Você pode imaginar como a gente leva as coisas de uma relação pra outra, né? Com ele, pude olhar e acolher meu eu machucado. Com ele, a vida flui gostosa. Não é pesado, apesar de eu sempre ter achado que seria, que ninguém iria me amar tanto a ponto de mergulhar no meu ser pra entender minhas dores. Eu não poderia ser mais agradecida.


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